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A responsabilidade civil ambiental é um tema recorrente nos Tribunais Superiores. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento sobre a natureza propter rem das obrigações ambientais com a Súmula 623, estabelecendo que essas obrigações podem ser exigidas do proprietário ou possuidor atual e/ou anteriores, conforme a escolha do credor. Na prática, isso possibilitou ao Ministério Público ajuizar ações civis públicas contra qualquer proprietário ou possuidor de um imóvel onde tenha ocorrido dano ambiental.
No entanto, a redação da súmula gerou interpretações equivocadas, sugerindo uma responsabilização sucessiva ilimitada. Para esclarecer essa questão, em 2023, a 1ª Seção do STJ, ao julgar o incidente de recursos repetitivos, fixou o Tema Repetitivo 1.204. Esse entendimento especificou que o alienante do imóvel não pode ser responsabilizado se seu direito real tiver cessado antes da ocorrência do dano, desde que ele não tenha contribuído, direta ou indiretamente, para a degradação ambiental.
Agora, um novo capítulo sobre a interpretação das obrigações ambientais foi aberto. Em decisão recente (AREsp 1.886.951-RJ), de relatoria do Ministro Gurgel de Faria e publicada no Informativo 818, a 1ª Turma do STJ reconheceu uma importante exceção no caso de desapropriações. O Tribunal decidiu que a parte ré em ação civil pública não deve arcar com a reparação do dano ambiental quando o valor do passivo ambiental já tiver sido descontado da indenização recebida pela desapropriação.
O caso envolveu uma empresa proprietária de um imóvel declarado patrimônio histórico pelo Poder Executivo. A empresa negligenciou a manutenção do bem, permitindo sua deterioração. Anos depois, o Ministério Público ajuizou uma Ação Civil Pública contra a empresa e o Município, pleiteando reparação pelos danos ambientais e indenização por danos morais coletivos. No decorrer do processo, o Município desapropriou o imóvel para revitalização do centro histórico.
Após condenação em primeira e segunda instâncias, a empresa recorreu ao STJ, alegando ilegitimidade para figurar no polo passivo da ação. O Ministério Público, por sua vez, sustentou que a responsabilidade da empresa estava respaldada pela Súmula 623 e pelo Tema Repetitivo 1.204. No entanto, o STJ reconheceu a peculiaridade do caso e decidiu parcialmente a favor da empresa, aplicando o distinguishing em relação aos precedentes citados.
O STJ destacou que o caso concreto se distingue dos processos que originaram o Tema 1.204, pois lá se tratava de aquisição derivada da propriedade (transferência voluntária), enquanto aqui há uma aquisição originária por desapropriação, que possui contornos próprios e distintos. O ônus de reparação que recaía sobre o bem expropriado já foi considerado no valor da indenização paga pelo Município, que descontou o passivo ambiental do preço.
Assim, a condenação da parte expropriada para reparar o imóvel desapropriado violaria o princípio do non bis in idem, pois resultaria em duplo prejuízo: 1) a empresa já recebeu indenização menor devido ao desconto do passivo ambiental; e 2) ainda seria obrigada a pagar novamente esse passivo na ação civil pública. Contudo, o STJ reconheceu a legitimidade da empresa para responder pelo dano moral coletivo, uma vez que essa obrigação não está vinculada diretamente ao bem expropriado.
Essa decisão encontra respaldo no art. 31 do Decreto-Lei nº 3.365/1941, que rege a desapropriação por utilidade pública e estabelece que “sub-rogam-se no preço quaisquer ônus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado.” Com isso, a obrigação de reparação ambiental, embora continue de natureza propter rem, passa a ser de responsabilidade do ente expropriante, cabendo apenas a condenação da empresa pelo dano moral coletivo.
Essa decisão representa um marco na jurisprudência ambiental, reforçando a necessidade de análise criteriosa da responsabilidade civil em casos de desapropriação. Para profissionais do direito ambiental e empresarial, compreender essa evolução é essencial para a orientação estratégica de seus clientes.
Escrito por:
Raul Carvalho
Advogado – Integrante do Setor Direito Administrativo