Por Mozart Iuri Meira Cótica, advogado do Setor de Direito Administrativo do Escritório Casillo Advogados.
RESUMO: Passado um ano da polêmica alteração promovida pela Lei Federal nº 14.285/21 ao Código Florestal, para permitir que os municípios e o Distrito Federal definam novas medidas para a faixa não edificável (Área de Preservação Permanente – APP) próxima a cursos d’água em áreas urbanas consolidadas, não tem sido evidenciado o efeito prático temido, à época, por órgãos ambientais, entidades e especialistas do segmento à preservação da natureza e do ordenamento urbano.
A pretexto de harmonizar o Código Florestal com a realidade urbana totalmente diversa no país, foi publicada, em 30/12/21, a Lei Federal nº 14.285/21, que alterou dispositivos do Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/12) referentes à proteção da Área de Preservação Permanente (APP) no entorno de cursos d’água em áreas urbanas consolidadas. A matéria também foi alterada na Lei Federal nº 11.952/09, que dispõe sobre a regularização fundiária em terras da União, e na Lei Federal nº 6.766/79, que trata do parcelamento do solo urbano.
No Código Florestal, foi redefinido o conceito de área urbana consolidada previsto no inciso XXVI, do art. 3º, a partir do que foi incluído o §10 ao seu art. 4º, para determinar que, em áreas urbanas consolidadas, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I, do caput do art. 4º, que variam de 30 a 500 metros conforme a largura do curso d’água, desde que: a) sejam ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente; b) não sejam ocupadas áreas com risco de desastres; c) sejam observadas as diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e, d) as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nessas áreas de APP sejam de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental, segundo o próprio Código Florestal.
Com isso, os municípios e o Distrito Federal ganharam autonomia para regulamentar a faixa de restrição às margens de rios, córregos e lagoas existentes em áreas urbanas consolidadas, seja para ampliá-la ou reduzi-la, já que o legislador não especificou que seria apenas uma dessas alternativas.
A aprovação dessa lei foi considerada uma reação ao julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 1770760/SC (Tema 1010), realizado em abril de 2021 pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que resolveu o aparente conflito do Código Florestal com a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei Federal nº 6.766/79), que previa um afastamento de 15 metros entre a edificação e o curso d’água.
Em seu acórdão, o STJ firmou a tese de que “Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.”
Segundo o relator, ministro Benedito Gonçalves, a definição pela incidência do Código Florestal leva em consideração a melhor e mais eficaz proteção ao meio ambiente, como dispõe o art. 225 da Constituição Federal, observando o princípio do desenvolvimento sustentável (art. 170, VI) e as funções social e ecológica da propriedade.
Notadamente, porque quase a totalidade dos rios e córregos cruzam mais de um município e a Lei Federal nº 14.285/21 abriu a possibilidade de o mesmo recurso hídrico ter uma regra em cada território, ou seja, receber um tratamento distinto por localidade, o que supera o interesse local.
Dessa forma, aquilo que era para facilitar acabou aumentando a complexidade da proteção ambiental dos recursos hídricos e trouxe mais incerteza e insegurança jurídica para os particulares.
Em que pese a constitucionalidade da Lei Federal nº 14.285/21 esteja sendo questionada perante o Supremo Tribunal Federal por meio da ADI nº 7146, seu conteúdo permanece válido, pois nenhum dispositivo foi suspenso.
No entanto, mesmo após um ano de vigência completado em dezembro de 2022, não se evidenciam os grandes impactos temidos por órgãos ambientais, entidades e especialistas do segmento à preservação da natureza e do ordenamento urbano.
Acreditava-se que, com essa prerrogativa, os entes federados modificariam rapidamente suas legislações para flexibilizar as regras de APP nas áreas urbanas consolidadas. Todavia, o que se observa são debates ainda bastante tímidos e nenhuma alteração legislativa significativa nos polos mais relevantes. Até porque, a Lei Federal nº 14.285/21 estabeleceu condicionantes importantes para evitar a banalização da autonomia legislativa.
De todo modo, é importante que os proprietários de imóveis permaneçam atentos a essa possibilidade e informados acerca das alterações legislativas nos seus municípios, tendo em vista que, pela redação da Lei Federal nº 14.285/21, é possível tanto flexibilizar, quanto encrudescer, as faixas de APP próximas a cursos d’água nas áreas urbanas consolidadas.